Superendividamento

02.07.20 01:01 PM

Decisões Recentes dos Tribunais

O superendividamento é a incapacidade geral do devedor de boa-fé de fazer frente a todas as suas dívidas. Muitos países possuem legislação específica a respeito deste assunto, como a França, na qual pode ser imposto ao credor aceitar um novo perfil de dívida, inclusive com valor menor. No Brasil, existe o Projeto de Lei 3.515/2015 que está na Câmara dos Deputados, pronta para Pauta na Comissão Especial. Este projeto visa instituir a proteção aos superendividados, que se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados, que pode até culminar em uma repactuação que será decidida pelo Juiz, respeitado o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo a primeira parcela devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial. 


Os nossos tribunais fazem várias referências ao superendividamento, mas nunca para diminuir a dívida ou mudar o seu perfil. Logo, o cenário atual é que não existe lei e não existe entendimento jurisprudencial que diminua efetivamente o valor da dívida das pessoas físicas que adquiriam dívidas maior do que a sua capacidade de pagamento. Quando os tribunais fazem referência ao superendividamento, apenas limitam o desconto direto na conta-corrente a 30% do valor dos rendimentos do devedor, mas a dívida continua integral, com os juros pactuados. Estas decisões geralmente tratam de pessoas físicas e com empréstimos bancários. A seguir são trazidas decisões recentes para que seja mais fácil visualizar as premissas dos nossos julgadores:

 

Decisão datada de 18.6.2020 (1031516-65.2017.8.26.0506)

 

Apela o Banco sustentando que o contrato foi livremente celebrado, devendo prevalecer a vontade das partes. Insiste não haver que se falar em limitação dos descontos, apontando que a responsabilidade pelo superendividamento é do próprio correntista. Subsidiariamente, pugna pela ampliação do desconto de 30% para 35%, o qual deve recair sobre o salário bruto. Busca a reforma do decisum.

(...)

Não se está aqui protegendo o mutuário irresponsável que se endivida além de suas possibilidades, mas sim, protegendo o direito à vida, saúde e dignidade.

 

Como se verifica, o autor não se opõe à dívida, mas quer a revisão da forma de pagamento, a fim de afastar o desequilíbrio, tornando as prestações suportáveis, de modo que a obrigação possa ser cumprida sem o sacrifício desumano de uma das partes, aliás, princípio básico já conhecido dos romanos, pela cláusula “rebus sic stantibus”, agasalhado pelo nosso Código de Defesa do Consumidor (art. 51, IV e § 1º, inciso III).

 

Decisão datada de 15.6.2020 (1008826-21.2019.8.26.0361)

 

APELAÇÃO OBRIGAÇÃO DE FAZER MÚTUOS BANCÁRIOS SUPERENDIVIDAMENTO.

1) Estado patrimonial crítico da devedora, pois os descontos em folha de pagamento e em conta-corrente comprometem a quase integralidade de seus rendimentos líquidos mensais. Necessidade de proteção da pessoa humana, com preservação do mínimo a garantir a subsistência digna.

(...)


Decisão datada de 15.6.2020 (2020208-73.2020.8.26.0000)

(...)Autor que fez uso de sua capacidade volitiva para efetuar as contratações, autorizando os descontos, atingindo o superendividamento, sendo o que se infere da análise dos empréstimos indicados nos autos principais, que envolvem, sim, empréstimos consignados, mais outros empréstimos pessoais de natureza distinta, e eles se encontram distribuídos em descontos em folha de pagamento e em conta-corrente. Restrição à liberdade contratual que tem por escopo a preservação da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. (...)Acolhimento em parte da pretensão da agravante, para limitar os descontos a 30% dos rendimentos líquidos do autor, porém, como fundamentado acima, só no que se refere a empréstimo consignado. (...)

 

Decisão datada de 27.5.2020 (1000952-70.2019.8.26.0462)

 

(...) Demonstrado o superendividamento do consumidor em razão da celebração de diversos mútuos bancários, é devida a limitação das prestações mensais a 30% de seus rendimentos líquidos. Natureza alimentar do proventos auferidos. Proteção do mínimo existencial. Precedentes jurisprudenciais. (...).

 

Das recentes decisões acima, pode se inferir que a dignidade humana é a principal preocupação do Poder Judiciário, ainda que o agente tenha contribuído para seu estado atual. Se a sobrevivência de uma pessoa física é fundamental, é importante se perguntar qual é a importância da sobrevivência de uma pessoa jurídica, principalmente se esta for uma pessoa jurídica unipessoal ou uma empresa bem pequena, de caráter pessoal. É tema em aberto o superendividamento da pessoa jurídica, quando o desconto direto em conta-corrente possa comprometer o dia-a-dia da empresa. Existem leis específicas como a recuperação judicial, mas para pequenas empresas, esta saída é irrealista. Como se vem adiantando em outros posts, é possível que esta pandemia faça alteração na mentalidade dos operadores do direito e esta questão seja, em breve, revista.

 

As Empresas Simples de Crédito – ESC devem ter um olhar especial para esta questão, pois podem ser vítimas de uma interpretação judicial que as equipare às entidades bancárias, esquecendo de que são empresas pequenas e seus contratos são paritários.