Há um dever de renegociar?

02.07.20 12:33 PM

Entenda a pergunta que advogados e juízes estão se fazendo. 


Os contratos são as fibras conectivas do tecido da economia mundial (palavras da Professora Judith Costa Martins). No caso de um conflito a solução é sempre renegociar. Quando uma das partes não quer renegociar o contrato, tradicionalmente a solução sempre é o ingresso de uma ação judicial pedindo ao juiz as revisão de cláusulas que se tornaram excessivamente onerosas, seja por razões internas do contrato (o preço ficou muito caro em relação a coisas iguais no mercado) ou por razões externas como um nova lei ou uma Pandemia. Estão se levantando vozes impondo às duas partes o deve de se sentarem e negociaram um acordo, antes que isto venha bater às portas do poder judiciário, que vem se chamando da obrigação de renegociar, cuja base estaria no artigo 422 do Código Civil:

 

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.


Hoje, é possível afirmar de forma objetiva que não existe um dever de renegociar. Contudo, os contratos que estão em vigor hoje e que estão sendo elaborados hoje, em boa parte não serão julgados agora, mas em um futuro duramente impactado por uma pandemia, Assim, é importante importante conhecer um pouco mais sobre o assunto e tentar entender para que lugar os contratos e sua interpretação podem caminhar. Lembre-se que o contrato feito hoje será interpretado bem depois de amanhã, daí a importância de se estar antenado com as doutrinas e jurisprudências que vão surgindo. 


É possível traçar uma diferença entre renegociar e revisar, atribuindo a estas palavras um sentido mais restrito, enquanto em um sentido mais amplo as duas palavras podem significar a mesma coisa. A renegociação é quando as partes de comum acordo modificam as cláusulas contratuais segundo a sua conveniência tentando dar maior eficiência ao contrato, oportunidades, enquanto a revisão é a verificação pontual de elementos contratuais que modificaram suas premissas originais. A atuação do poder judiciário é na revisão, ou seja, na correção daquilo que o tempo trouxe um efeito negativo, sendo a atuação de árbitros e juízes mais restrita nos contratos paritários e mais amplo nos contratos de consumo. Nos contratos paritários (b2b) A base jurídica para esta revisão tem seu principal foco nos artigos abaixo, do Código Civil:


Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.


Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

 

Em outros posts, discutimos a possibilidade crescerem teses que se aproximam do Capitalismo Humanista e já fizemos algumas análises a respeito de eventual mudança na condução da jurisprudência em nosso post sobre a excessiva onerosidade dos contratos, bem como trouxemos decisões recentes a respeito da redução do aluguel, por força da COVID. Neste momento crucial, espera-se do poder judiciário que seja bastante técnico e tenha uma  adaptabilidade ordenada. O excessivo voluntarismo, a falta de critérios na intervenção nos contratos ou a absoluta indiferença a este momento de crise são indesejáveis. 


O DEVER DE RENEGOCIAR é um instituto que deve ser pensado pelo legislador. A experiência internacional ainda não está consolidada e se bem observada, impõe um dever às duas partes e não apenas ao credor. Muito se fala do Código Civil francês, no artigo abaixo:

  

Article 1195

                                    Modifié par Ordonnance n°2016-131 du 10 février 2016 - art. 2

 

Si un changement de circonstances imprévisible lors de la conclusion du contrat rend l'exécution excessivement onéreuse pour une partie qui n'avait pas accepté d'en assumer le risque, celle-ci peut demander une renégociation du contrat à son cocontractant. Elle continue à exécuter ses obligations durant la renégociation.


En cas de refus ou d'échec de la renégociation, les parties peuvent convenir de la résolution du contrat, à la date et aux conditions qu'elles déterminent, ou demander d'un commun accord au juge de procéder à son adaptation. A défaut d'accord dans un délai raisonnable, le juge peut, à la demande d'une partie, réviser le contrat ou y mettre fin, à la date et aux conditions qu'il fixe.

 

A inclusão de um artigo como este dentro do nosso ordenamento não parece que surtiria muitos efeitos a curto prazo. Ao nosso sentir, é bastante importante que se imponha ao devedor a obrigação de antes de parar de cumprir o contrato, que tenha a obrigação de ser objetivo e trazer a sua demanda de revisão, mas somente a médio e longo prazo que isto impactaria a cultura empresarial, principalmente do contrato entre pessoas físicas, pequenas e médias empresas. Observa-se que na elaboração do contrato, de comum acordo, as partes podem colocar esta cláusula. Não vimos ainda uma norma que tenha uma técnica de elaboração capaz de resolver o problema da revisão das cláusulas que sentiram o efeito do tempo. 


Apesar de não ter efeitos concretos a curto prazo, acreditamos que o dever de buscar uma solução prévia antes do ingresso do poder judiciário seja o caminho a ser adotado pelo legislador. É importante estar atento e acompanhar o desenvolvimento destas normas.